Como o período gramatical do Latim difere do modo pelo qual escrevemos um período de orações em Português? Para entender as diferenças, é preciso entender a sintaxe. Evidentemente não pretendo escrever sobre a sintaxe latina em geral, mas apenas mostrar sua elegância.
A vantagem das línguas flexionais, como o Latim, é que a função sintática dos termos na oração é visível nas flexões de caso. O uso do Latim para o aprendizado do Português é fundamental. Ao abandonar o Latim como disciplina curricular obrigatória, os burocratas do governo roubaram dos nossos jovens o único canal que estes tinham pelo qual podiam usar da sintaxe para usufruir da semântica e da riqueza de ideias no texto. Nada, porém, que a expressão “A invasão dos bárbaros” não descreva tão limpidamente.
Uma “oração” é uma proposição composta de um único verbo (ou locução verbal) que passa uma ideia principal. Por exemplo, “Antígono foi morto no combate”.
Quando a essa ideia se acrescentam ideias acessórias que a completam, detalham ou explicam mediante outras orações e de tal modo que, em seu conjunto, essa sequência de orações ainda assim se mostre um todo harmônico e passe a ideia principal de modo mais rico, temos então o “período”, palavra do Grego que significa “caminho ao redor”, ou seja, uma espécie de circularidade, uma vez que, chegados ao fim, voltamos à ideia principal e temos dela o entendimento mais completo.
O termo período é a junção do prefixo grego περί (perí = em torno de, ao redor de) com o substantivo ὁδός (hodós = caminho, via), daí περί+ὁδός>περίοδος, tendo havido a supressão do “o” aspirado, aspiração indicada pela transliteração do espírito áspero [aquela vírgula invertida acima do ὁ que o faz ser pronunciado como o “ró” do carioca] com a letra h) e a acentuação tônica para mais longe possível da última sílaba, como é regra no Grego Clássico. A tônica caiu no “í” porque as duas últimas silabas são breves.
Nas línguas modernas, como o Português, o costume é introduzir as ideias acessórias por meio de orações coordenadas, como se as ideias acessórias fossem também ideias principais. Muitas vezes recomenda-se, aliás, não se exagerar no número de orações no período, fazendo-se, para tanto, períodos curtos. Esse costume tem por implicação o uso acentuado do modo indicativo em detrimento do subjuntivo, que tem nas orações subordinadas a sua maior presença.
Assim, por exemplo, para enriquecer a ideia principal de que “Antígono foi morto”, podemos introduzir a ideia acessória de que ele morreu em razão de ter lutado contra Seleuco e Lisímaco:
Em Português: “Antígono lutou contra Seleuco e Lisímaco e foi morto no combate”.
Observe que os verbos ficam no indicativo, pois o período é composto de duas orações coordenadas: 1. “Antígono lutou contra Seleuco e Lísimaco”, 2. “Lisímaco foi morto no combate”. Ao juntá-las no período, omitimos o sujeito da oração 2, pois se subentende a partir do sujeito em 1, e unimos as duas orações pelo conectivo “e”, de modo que temos aí orações coordenadas sindéticas aditivas. O problema é que agora não sabemos qual é a ideia principal e qual a acessória: que Antígono morreu no combate ou que lutou contra Seleuco e Lisímaco? Esse é o preço que pagamos por esse costume.
Já em Latim, o costume é introduzir as ideias acessórias mediantes orações subordinadas, reservando a oração principal para denotar claramente a ideia fundamental, que é a morte de Antígono em combate. Dessa forma, faz-se uso intenso do subjuntivo. Em Latim, diríamos:
Em Latim: “Antigonus, cum adversus Seleucum et Lysimachum dimicaret, in proelio occisus est”.
que, numa rígida tradução seria “Antígono, como contra Seleuco e Lisímaco lutasse, no combate foi morto”. O trecho latino foi retirado de Cornelius Nepos, historiador romano que viveu no século I a.C. e escreveu a obra “De Illustribus Viris” (Sobre os Homens Ilustres). O trecho é do capítulo 21 (De Regibus), seção 3.
Há mais coisas nesse balaio. O modo do termo verbal “dimicaret” (traduzido por “lutasse”) é o subjuntivo, mas seu tempo é o imperfeito, que denota uma ação em andamento, quando então o fato de ter sido morto ocorreu nalgum ponto desse processo. É pra isso que serve o verbo no imperfeito, até mesmo no Português.
O extra no balaio que mencionei, porém, não é só isso. Note que a oração subordinada (cum adversus Seleucum et Lysimachum dimicaret = como contra Seleuco e Lisímaco lutasse) fica encaixada no meio da oração principal (Antigonus in proelio occisus est). De que forma isso se dá? Você pega a ideia principal (Antigonus occisus est = Antígono foi morto) e faz três coisas:
1. Abra um buraco no meio de “Antigonus occisus est”, separando o sujeito (Antigonus = Antígono) do verbo (occisus est = foi morto). Assim: “Antigonus […] occisus est”.
2. Nesse buraco insira a oração subordinada (que virá entre vírgulas): [cum adversus Seleucum et Lysimachum dimicaret].
3. O termo “no combate” é outra ideia acessória, só que não é oração, pois não tem verbo, ela apenas identifica a circunstância na qual Antígono foi morto. Em que situação ele foi morto? Em combate (in proelio). Por isso, é um adjunto adverbial de circunstância: fica junto do verbo e lhe especifica a circunstância. O Latim faz isso colocando “in proelio” antes do verbo “occisus est” e no caso ablativo.
O período é aberto com o sujeito (Antígono) e é fechado com o verbo (occisus est). É o envoltório principal que circunda o miolo de acessórios. Para quem lê, fica fácil se valer da análise sintática para a compreensão semântica do texto.
Uma expressão visual, que espero seja clara, do que acabei de explanar é esta:
ANTIGONUS [(, cum adversus Seleucum et Lysimachum dimicaret,) in proelio ] OCCISUS EST.
ANTÍGONO [(, como contra Seleuco e Lisímaco lutasse,) no combate] FOI MORTO.
A própria oração subordinada repete esse modo de posicionar os termos da oração. Observe que se escreveu “cum adversus Seleucum et Lysimachum dimicaret”, ou seja, “como contra Seleuco e Lisímaco lutasse” e não “como lutasse contra Seleuco e Lisímaco”. Por quê? Porque as pessoas de Seleuco e Lisímaco são sintaticamente inferiores à ideia de “lutar”. Se a oração subordinada for contemplada em si mesma, ela terá a seguinte configuração:
CUM [adversus Seleucum et Lysimachum] DIMICARET.
COMO [contra Seleuco e Lisímaco] LUTASSE.
Portanto, as subordinações e coordenações são encaixadas de modo a desenhar na mente do leitor todo um pano de fundo em que a história não só se desenrola no tempo, como também transmite as relações ontológicas entre os fatos que a compõem. Graças à riqueza do sistema flexional de casos, os termos podem ser dispersos na oração à vontade, sem prejuízo do entendimento. Entretanto, o procedimento que descrevi tem outra função, além da mera sintaxe: há uma função estética. É simplesmente belo construir um período gramatical como se constrói uma catedral gótica ou como se desenha um fractal.
Valete quam optime.
Rodrigo Peñaloza, 16-jan.-2019
Publicado originalmente em https://medium.com/@milesmithrae/a-eleg%C3%A2ncia-da-sintaxe-do-per%C3%ADodo-latino-rodrigo-pe%C3%B1aloza-16-jan-2019-74f826e2be29?fbclid=IwAR26KPy2Ec4xpAEnVbT6yvdxF_1GT6SGXHRfTEFRO8Cfsc2JeLQ_mkFRyz4
Desculpe, mas o texto acima foi copiado e traduzido do livro “Latin Grammar”, escrito em 1876 por Benjamin Hall Kennedy, D.D., professor emérito de grego da Universidade de Cambridge, Inglaterra. Não dar o devido crédito ao autor configura-se em crime contra direito autoral e plágio. Peço retificação, evitando comunicação ao departamento de estudos de línguas da referida universidade.
Parabéns pelo didatismo da lição sobre a sintaxe latina!
Olá, Cássia!
O texto é de autoria de um aluno nosso, vamos falar com ele.
Entretanto, uma rápida pesquisa no google não me permitiu encontrar a referida obra. Encontrei somente estas: Public School Latin Primer (1866), the Public School Latin Grammar (1871), e the Revised Latin Primer (1888). Esta última possui uma edição online, virtual. Caso tu possa nos apontar onde o nosso artigo copia parte do livro, ficaríamos gratos.
Em 1876, já se falava em fractais ? !
Em 1876, já se falava em fractais ? !