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Caminhos para uma educação clássica – Parte I: o que são os clássicos

O que significa a palavra "clássico"?

Esta série de artigos foi transcrita da palestra do prof. Matheus Knispel da Costa, no I Congresso de Educação Liberal em 2016 . O link para a palestra no YouTube se encontra ao final do artigo.

Não podemos identificar e percorrer os caminhos que levam a uma educação genuinamente clássica sem termos uma clara noção do que são os “clássicos” e das características de uma educação que se baseia neles. Feitas, portanto, essas considerações, buscaremos primeiramente expor alguns dos meios disponíveis àqueles que desejam obter uma educação clássica.

O que se deve entender por clássicos? Aqui em Porto Alegre nós temos um clássico, que é o GreNal, um jogo clássico entre dois times da região. Mas eu também posso ter um clássico do rock, uma música composta há 20 anos que ainda tocas nas rádios. “Clássico” é de fato uma palavra que, significando tantas coisas, passa a significar pouco – ou nada – e acaba perdendo o sentido que pode ter possuído alguma vez.

Estudando latim e grego, sobretudo, o estudante dessas línguas tem uma espécie de “prazer” ao perceber que muitas das palavras que utilizamos com naturalidade, com sentido naturalizado, surgiram de uma metáfora, alguém que pensou em uma metáfora, aplicou-a, botou em um papel e ela “pegou”, e assim ela chegou milênios depois de sua criação.

Animae cultura filosofia est ​

Cultura é uma dessas palavras que surgiram como metáfora. Certa vez, Cícero, já velho e desiludido com tantas coisas da vida, começou a se dedicar a filosofia, vendo que não dava para fazer muito na República (sabemos do fim que ele teve). Em uma de suas obras de teor mais filosófico, as Tusculanae disputationes, as discussões de Túsculo, cidadezinha onde ele tinha uma propriedade, ele fala da filosofia, mas cria uma metáfora chamando-a de animae cultura: Animae cultura filosofia est. Filosofia é o cultivo da alma.

Uma metáfora linda. Assim como o campo quando bem cultivado dá frutos e frutos que compensam esse trabalho que, todos sabemos, não é dos mais simples, a filosofia é como um cultivo do ânimo, da alma. Hoje temos colheitadeiras e máquinas que nos auxiliam, mas a princípio o trabalho no campo não é muito simples, há muito suor envolvido, mas os frutos que podem provir do campo bem cultivado compensam os trabalhos e por isso o homem continua fazendo-os ano após ano. Da mesma forma o cultivo do espírito dá frutos que compensam todos os esforços. Sabemos que uma vida espiritual, uma vida intelectual, uma vida dedicada às disciplinas que podem melhorar a nossa vida espiritual, requerem trabalhos que não são muito pequenos. No entanto, os frutos que provém daí são grandes.

É interessante notar que essa palavra é hoje usada nos contextos mais estranhos: falamos de cultura de massa, cultura do estupro, cultura de muitas coisas. A palavra já está naturalizada, já tem um sentido, mas, para que ela tivesse sentido, alguém teve que tomar iniciativa e criar uma metáfora. Às vezes a gente pode até data-la, às vezes não, mas nesse caso sabemos quem foi: Cícero. Não há registro dessa metáfora utilizada anteriormente nesse contexto.

Ad gubernium sedere

Outra metáfora que hoje é naturalizada é governar. Temos presidente, prefeitos, pessoas que estão envolvidas no governo de uma nação, às vezes de uma instituição. Mas a princípio, em latim, gubernare é função daquele que pilota o navio. Existe até a expressão ad gubernium sedere, sentar-se ao leme. O gubernium significa leme, que nada mais é do que um remo maior do que os outros que ficava na popa, e o piloto do navio, o gubernator, era aquele que ficava no leme. Ele sedebat ad gubernium, sentava-se junto ao leme, e isso significava gubernare.

Procurei e não achei referência anterior ao próprio Cícero (ele de novo!), mas ainda não encontrei, não quer dizer que não exista. Ainda está para ser feito um estudo de quantas metáforas de Cícero compõem a nossa língua. Até o momento parece que foi ele que usou essa palavra da primeira vez, gubernare, no contexto da res publica. Ele fala: republica gubernare, orbem terrarum gubernare. Ele fala esse tipo de expressão utilizando uma metáfora que hoje é largamente utilizada – governo, organização não-governamental – e dá origem a uma série de palavras que são hoje muito naturais. Mas não foi sempre assim. Houve alguém com iniciativa de metaforizar a coisa. Às vezes sabemos o nome, às vezes sabemos a data. Essa é uma das alegrias tácitas do estudante de letras clássicas. Ele começa a estudar e percebe que a coisa não foi sempre assim.

Classicus et assiduus scriptor, non proletarius

Por que estou falando isso? Porque quando falamos de clássicos estamos usando uma palavra equívoca. Mesmo quando nos referimos especificamente aos autores gregos e romanos, aos autores clássicos, das línguas clássicas, da civilização clássica, mesmo então estamos usando uma metáfora, que também pode ser identificada. Quer dizer, classicus em latim não significou sempre um autor clássico. Alguém teve que tomar essa iniciativa. Quem foi? Ao que parece, a fonte para isso é um sujeito chamado Aulo Gélio, um escritor romano, sujeito erudito que escreve sobre muitas coisas  e que viveu no século II depois de Cristo. Seu livro se chama Noctes Atticae, Noites Áticas, é um livro que tem de tudo. Ele traz várias anedotas, e uma delas é sobre um grande orador da época chamado Frontão. Esse orador, lá pelas tantas, se encontrou com um jovem escritor que havia usado uma palavra no plural, um pouco estranhamente. E a palavra em questão era harena, que quer dizer areia e o jovem poeta usou no plural. Harenas, acusativo plural. Frontão ouviu aquilo, estranhou e percebeu que não estava certo, então propôs  a ele que verificasse isso, argumentando que só havia a forma no singular. Harena sempre, nunca harenae. E o jovem defendeu-se, dizendo que era certo.

Frontão então recomendou que, para resolver essa questão, o jovem procurasse nos antigos e bons autores se algum deles havia utilizado essa forma. Se algum classicus et assiduus scriptor, non proletarius, disse isso. Literalmente se um escritor clássico, assíduo e não proletário disse uma coisa dessas. Se disse, problema resolvido, o jovem teria um autor no qual poderia basear seu comportamento enquanto escritor.

Frontão não dá a resposta, não impõe sua própria visão. Ele poderia, pois era um orador bem quisto. Mas recomendou um scriptor classicus. Aí ele usou uma metáfora, e até onde eu pude encontrar, é a primeira ocasião em que classicus se juntou a scriptor, ou seja, que essa palavra, esse adjetivo, classicus, se utilizou no meio literário, que é aquilo que nós fazemos hoje. Aqui, ao que parece, nasceu a metáfora. O sujeito foi Frontão, aconteceu na primeira metade do século II d. C, então podemos inclusive datar quando aconteceu.

O que significa "clássico"?

Mas que metáfora é essa? Classicus vem de classes. Um dos últimos reis de Roma, chamado Servio Túlio, estava incomodado com a aristocracia romana, que se opunha a ele. Ele criou uma maneira de superar essa aristocracia, dividindo a população romana em 5 ou 6 classes (o número é um pouco controverso), de acordo, como Tito Lívio diz, pro pecuniarum habitu, de acordo com o dinheiro que tinham. Os mais ricos e mais opulentos compunham a primeira classe, os mais pobres compunham a última, quinta ou sexta. Que diferença isso fazia? A primeira classe tinha mais voz e votava primeiro. Na prática decidia muitas das questões mais importantes do estado romano então – então reino e posteriormente a República -. Essa divisão de classes permaneceu até Augusto, mais com uma existência mais formal, sem muito valor político.

Mas que visão é essa? Temos aí classes passando a significar grupos de pessoas com certas características. E daí classicus passaria a fazer referência a membros de cada uma dessas classes. Mas na prática, classicae eram os membros da primeira classe. Eram os melhores, os mais ricos, os mais poderosos, os mais excelentes. Aqueles que depois serão chamados de optimates, os ótimos, os melhores da república, os que decidem coisas que valem. Classicae, na prática, significa isso. Por isso que Aulo Gelio apud Frontão, diz classicus, non proletarius scriptor. Na prática, seria como dizer literalmente um escrito rico, não um pobretão. Mas é claro que aqui não estamos falando de dinheiro, pois sabemos que ser escritor e ter dinheiro não são coisas que coincidem sempre, e isso no mundo greco-romano não era exceção.

O contrário de classicus: sermo plebeius

A metáfora contrária a classicus ou dives ou optimas já existia: plebeius. De novo, Cícero. Como surgiu? Um de seus interlocutores estranhou seu estilo nas cartas, bem menos eloquente do que em seus grandes discursos. Cícero não utilizava uma palavra em grego em suas obras retóricas, mas em suas cartas ele utiliza frases inteiras. O seu interlocutor estranha os dois estilos radicalmente diferentes. Cícero se defende: é uma carta e na carta eu escrevo sermone plebeio, ou seja, com uma expressão plebeia, não com uma riqueza linguística, escrevo como plebeu.

Então a metáfora contrária já existia para escrita: temos ali sermo plebeius, uma expressão, uma fala plebeia. O próprio Cícero fala, nessa obra, as Tusculanae disputationes, que os filósofos  que se distanciam de Sócrates, Platão e das escolas filosóficas devem ser chamados de plebei. Para Cícero, qualquer um que se distancie disso deve ser chamado de plebeu, não faz mais parte da elite filosófica composta  pelos herdeiros daquela tradição da escola filosófica, que em latim chamamos familia, pelos integrantes daquela família.

Então plebeius já existia como metáfora, não fazendo referência à riqueza, mas à qualidades mais intrínsecas do indivíduo. O que Frontão fez foi o contrário: devemos nos aproximar não do escritor proletarius, plebeius, mas do classicus assiduus. Um escritor rico, que depois de cuja leitura, tu te sentes maior. Ele tem algo a te dar, diferente do escritor pobre, que nada tem a te dar. O escritor rico tem, e tu podes usufruir dessas riquezas.

A origem de Assiduus já é um pouco mais controversa. Assidere é sentar-se junto à algo. Daí tem o sentido de permanecer. Assiduus é aquilo que permanece, que resiste ao longo do tempo. Não é uma coisa passageira. Isso é o primeiro sentido, que cabe aqui, um escritor que venceu o tempo, que é rico e venceu a prova do tempo.

Outro sentido para assiduus é diligente, cuidadoso, que usa esmero. Também cabe aqui. um escritor que é cuidadoso, que não escreve como vem à cabeça, ou, se escreve, revisa todo seu trabalho. Pensemos em Virgílio, que morreu revisando a Eneida e, descontente, pediu que fosse lançada às chamas (ainda bem que não fizeram!).

Conclusão

Muitas das palavras que nós usamos naturalmente, como se nada fossem, surgem de uma pessoa que tem a iniciativa, que decidiu bolar uma metáfora, pegar um termo que se aplica a um campo e trazê-lo para outro a partir de certa semelhança. Devemos muitas palavras a algumas pessoas específicas (no caso do latim, essa pessoa muitas vezes é Cícero).

 No próximo artigo, falaremos sobre o que é uma educação baseada nos clássicos.

 

Link da palestra no YouTube: https://youtu.be/NSXqG_ou1sY

Este post tem 2 comentários

  1. Ana Paula

    Após ler o fragmento de texto, percebi que Aulo Gélio, sugere ao “jovem aprendiz” consultar os cânones em busca de conhecer e utilizar a norma culta da língua. Para Gélio, o rapaz cometeu um erro gramatical. Gélio não parece ser pedante. Ele sugere ao rapaz a pesquisa. Está bastante ligado à norma culta. Por isso, sugere os “classicos”. Será que podemos ver assim?
    Ao passo que, Cícero já fazia uso da adequação linguística, – um conceito de uso da língua que nos parece novo.
    Mas, ao que percebo, é mais antigo do que poderia eu imaginar.
    E, em toda essa divisão de classes (5 ou 6 estratos sociais) por questões geopolíticas, eu pergunto: como o acesso, o emprego, o uso da língua ficaria de fora? Não mesmo. Sempre algo a se discutir.
    E se a questão dos clássicos advém de classes dominantes, então ser “clássico” é uma questão de domínio social?

    Vou seguir esses textos. Gostei.

  2. Ana Paula

    Após ler o fragmento de texto, percebi que Aulo Gélio, Através da história de Frontão, sugere ao “jovem aprendiz” consultar os cânones em busca de conhecer e utilizar a norma culta da língua. Para Gélio, o rapaz cometeu um erro gramatical. Gélio não parece ser pedante. Ele sugere ao rapaz a pesquisa. Está bastante ligado à norma culta. Por isso, sugere os “classicos”. Será que podemos ver assim?
    Ao passo que, Cícero já fazia uso da adequação linguística, – um conceito de uso da língua que nos parece novo.
    Mas, ao que percebo, é mais antigo do que poderia eu imaginar.
    E, em toda essa divisão de classes (5 ou 6 estratos sociais) por questões geopolíticas, eu pergunto: como o acesso, o emprego, o uso da língua ficaria de fora? Não mesmo. Sempre algo a se discutir.
    E se a questão dos clássicos advém de classes dominantes, então ser “clássico” é uma questão de domínio social?

    Vou seguir esses textos. Gostei.

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