A certa altura do consagrado livro A vida Intelectual, o Pe. Antonin Sertillanges fala sobre a questão do estudo do Latim. O argumento que ele expõe refere-se especificamente ao aprendizado do Latim para a leitura da obra de Santo Tomás de Aquino, cuja complexidade vocabular e sintática ele descreve como passível de ser dominada em apenas 2 meses. Tendo em vista isso, Sertillanges conclui ser sintoma de preguiça grave não se dispor ao estudo do aquinate no original, sabendo-se de todas as benesses a serem colhidas.
Ora, é evidente que existe uma larga diferença entre aprender o latim técnico de Santo Tomás e o latim de Cícero, voltado para o estudo dos clássicos; diferença que se vai traduzir por fim numa diferença de tempo e de esforço de estudo. No entanto, será que o cerne do argumento de Sertillanges não é consistente para os dois casos?
É de se notar que, em vista das benesses adquiridas no estudo clássico, apenas um ano, digamos, de aplicado estudo do Latim afigura-se um tempo irrisório, mas que não será perdido. Caso assim não pareça, vamos olhar com certa detença para algumas das vantagens mencionadas.
Por primeiro, o óbvio que precisa ser dito. O Latim é a fonte de onde surge a língua portuguesa e esta se beneficia muito com aquele. Como nos ensinou o Prof. Matheus Knispel no Terceiro Congresso de Educação Liberal, não somente as palavras que usamos ainda hoje, mas também grande parte das metáforas que enriquecem o conjunto de conceitos com que navegamos no dia a dia foi criada em latim, por autores clássicos. Um exemplo? A própria palavra clássico, que pode ser referida a uma metáfora utilizada pela primeira vez no século II DC. Outra, muito utilizada nos meios culturais: cultura, a qual pode ser retraçada até Cícero, que escreve, provavelmente pela primeira vez, sobre cultura d’alma.
Hoje em dia, estas palavras soam literais e perigosamente compreensíveis. Achamos que as entendemos, pois achamos que elas apontam para uma coisa literal e concreta como, digamos, um abacaxi. Mas não é tão simples. Como tudo que envolve a alma humana, precisamos sair à cata de analogias no mundo físico para nos expressarmos; e, nessa história de analogia, qualquer nuance faz grande diferença. Basta pensarmos no seguinte: por que Cícero, ao falar sobre edução e estudo, usou a analogia do cultivo da terra e não, por exemplo, a do paisagismo? Só isso já torna claro que a analogia não é mero instrumento para se gerar um simples aporte visual; porém requer toda uma capacidade de interpretação que consiga deslindar os vários nexos analógicos contidos naquela imagem que, à primeira vista, parecia simples.
Contudo, mais do que só para palavras metafóricas que se cristalizaram em significados aparentemente literais, o Prof. Matheus chama a atenção para expressões que, nas línguas modernas, subentendem um tipo de paixão humana e, nas clássicas, subentendem justamente a reação contrária. Assim, em português – mas em outras línguas românicas também –, dizemos que “temos fome” ou que “temos medo”. Por outro lado, em Latim e em Grego se diz que a pessoa foi “pegada pelo medo ou pela fome”. Qual dessas duas atitudes perante as paixões humanas é a mais correta e salutar não cabe discutir neste texto; mas quem negará que é muito importante saber que elas existem e que devemos pensar a respeito delas?
Bem. Todas essas coisas decerto compõem um aporte considerável, mas que fica ainda aquém de ser tudo o que há para ser dito.
E muito já foi dito, embora nunca seja demais reiterar, a respeito de como o Latim abre as portas para um mundo literário – filosófico, teológico e ficcional; quem deseja se aprofundar sobre, deve buscar as palestras do segundo e do terceiro Congressos de Educação Liberal promovidos por este instituto. No entanto, ainda cabe dizer algumas palavras nesse sentido, mesmo que sejam isentas de novidade.
Aproveitando uma feliz metáfora utilizada pelo Prof. Matheus em outra palestra, entrar para o mundo dos clássicos, do Latim e do Grego, é obter um passaporte para outra pátria; uma segunda pátria; uma pátria intelectual: da qual fizeram parte as melhores mentes e os melhores caracteres da nossa civilização.
Podemos discutir se essa pátria é nova ou velha. Para nós, que vivemos encerrados na cultura desta época, certamente ela aparecerá como nova. E é bem notável que a cultura atual é extremamente invasiva, estando quase que a nos assediar noite e dia. Dessa forma, é necessário levar em conta que a nossa língua materna está saturada com significações absorvidas dessa cultura, cheia de influências no mais das vezes deletérias para uma vida de estudos. O que, então, podemos fazer?
Pois também nisso o aprendizado de línguas clássicas é uma mão na roda.
Como dito, para nós elas se afiguram como uma nova pátria, embora sejam antigas. Contudo, poderíamos também dizer que são novos odres, como na parábola evangélica. Ora, quem persegue uma vida de estudos, está em busca de novos significados, novos conceitos, novas perspectivas, que não aqueles aprendidos na vida pragmática. E estes são o novo vinho. O novo vinho pede novos odres, porque os velhos podem quebrar-se ao recebê-lo. Por paradoxal que soe, o novo odre e o novo vinho são os registros das eras passadas.
Quem quer que comece a estudar o Latim, por exemplo, e experimente rezar nessa língua, não poderá talvez deixar de notar certa suavidade e viço nas palavras, pois estas não vêm carregadas com o entulho semântico que nossa língua nativa possui em nossa mente. Assim, ao irmos aprendendo a nova língua, que passa longe de ser influenciada pela cultura de massas atual – língua que na verdade está embebida do que de melhor se pensou e se escreveu no Ocidente –, estaremos construindo um depósito luxuoso n’alma, para guardarmos os tesouros ajuntados na vida de estudos.
Não precisamos, decerto, paramentar-nos regiamente, como fazia Maquiavel ao ler os autores clássicos, depois de viver na lama o dia todo, ou após jogar cartas no boteco, emitindo brados que eram ouvidos no vilarejo mais próximo. Também não precisamos jogar no fogo tudo que é feito em nosso tempo como, dizem, Platão fez com seus escritos de juventude antes de se juntar ao grupo de Sócrates.
Isso tudo não nos pede o estudo clássico, ao menos hoje em dia, ou, ao menos não a todos. Devemos, ademais, admitir que existe uma gradação nesses estudos, assim como em quase todas ações humanas. Por exemplo, a pessoa que estuda Latim para apenas se aprofundar em conceitos do Direito não vai precisar ir tão longe, quanto a pessoa que sonha tornar-se eloquente como Cícero, tomando-o como modelo. Ou quanto aquele que pretende mergulhar na filosofia clássica, aventurando-se a sondar textos jamais traduzidos para o português. Tudo isso, no entanto, e bem entendido, destila um princípio claro e límpido: quem almeje chegar longe na vida intelectual terá que cursar os estudos clássicos em algum grau e em alguma medida. O corolário óbvio disso é: quanto mais, melhor.
De tudo quanto foi dito, por certo não se depreende moleza nos estudos clássicos. E, no entanto, como falávamos no princípio, furtar-se a eles acaba sendo, em algum sentido, um sintoma de preguiça intelectual – é-o sem dúvidas para aqueles que têm ambições nessa esfera elevadíssima. Testemunha-o assim o Pe. Antonin Sertillanges. E, com tudo mais que se ajuntou neste artigo a esse testemunho, torna-se visível a importância desses estudos. Para que se torne palpável também, mister é que se assumam as suas incumbências e que se meta as mãos à obra. E nunca se soube de quem o tenha feito até certa altura e que, depois, tenha-se arrependido.