Surgida no século V depois do advento de Cristo, a escrita latina de Santo Agostinho chamou a atenção do mundo todo, criativa, profunda e ao mesmo tempo simples. A riqueza filosófica e psicológica de seus escritos impressiona até mesmo os céticos do nosso século, no qual as milhares correntes de ideias se conflitam como um trânsito de carros insuportável aos olhos. Como esse gênio, o mundo conheceu muitos outros, que apareceram posteriormente: teólogos, filósofos, escritores, físicos, fundadores de novas ciências, causando flexões no curso da história do pensamento, das técnicas e dos costumes humanos. Ainda em nossa época, aparecem essas pessoas e sempre seremos influenciados por elas. São eles a trazerem novas descrições e narrativas ao mundo. Ainda que os “influencers” digitais pareçam propagadores poderosos de opiniões, suas “críticas” estarão limitadas ao seus conhecimentos muito parciais, que virão de fontes menores ou “segunda mão” de filósofos e pensadores, assim como fazem os jornalistas, até mesmo os bons. Não quero dar nenhum tom pejorativo à nova profissão da internet, mas apenas comparar esses dois tipos de influência: de alguém que observa a realidade alicerçado em uma sabedoria profunda e dela traz algo inexplorado e, assim, guia o mundo em alguma direção, daqueles que apenas propagam algo de maneira mais atrativa. Ambos têm seu papel no mundo. Mas o que desejamos, de fato?
Alguns de nós somos convidados a navegar em águas mais profundas. Isso pode custar muito caro para nossas vidas. Pode nos pedir grandes esforços de abnegação. Mas eis que o convite é sempre muito belo, atraente, e muitos de nós damos a vida por esse tipo de caminho. Santo Agostinho e muitos outros buscaram isso que chamamos de sabedoria, e esta sabedoria dá seus frutos até hoje. Pessoas como ele passaram por um longo caminho até a verdadeira sabedoria ou para concorrer a ela. Como inicia esse caminho? Para onde vai? Podemos participar dele? Posso responder algo dessas perguntas. Inicia com latim e grego, ainda que o latim venha primeiro na ordem de importância, posso explicar por qual motivo em outro dia. Segunda resposta: esse estudo concorre para uma vida extremamente frutífera e podemos, sim, participar dessa tradição. Para entender por que essas línguas estão no início desse processo, precisamos entender o que elas nos possibilitam, quais capacidades nos dão.
O estudo de latim e grego nos dá inúmeras capacidades, primeiro por meio das habilidades que adquirimos no processo de aprendizagem e, em seguida, pelo repertório cultural que as línguas conservam. Nos tornam capazes de memorizar muitas informações complexas, analisar textos, discursos, mais tarde, a própria realidade aparentemente caótica e, por fim, de criar. Esta última está ligada a produção textual e a capacidades de composições diversas, em todo tipo de comunicação humana. Embora não deva me alongar no tema das disposições necessárias para isso, já deixo claro que se o estudante “convidado” a participar desse caminho, nunca mergulhou em nenhum tipo de estudo anteriormente, no qual precisasse ampliar suas habilidades, ou que, desse modo, desconheça a necessidade humana de saber ou livrar-se da ignorância, seja de qualquer circunstância na qual esteja inserido, será a ele um caminho mais penoso. Então é necessário estar aberto ao desconhecido, à dúvida e ao sofrimento em inúmeros momentos de incompreensão e inaptidão. Os efeitos dos estudos aparecem aos poucos, gradualmente, mas é possível identificar o próprio avanço na medida em que progredimos no aumento da complexidade ou nos temas dos Estudos Superiores, como chamariam os Jesuítas fundadores da Ratio Studiorum a filosofia, as matemáticas, a historiografia, o direito etc.
Ao contrário do que muitos pensam, esses estudos exigem grande capacidade de memorização, análise, organização, criação e uma experiência que reúna inúmeras habilidades e conhecimentos menores. Por exemplo, aprender filosofia verdadeiramente é como construir um enorme prédio. Precisamos da fundação, de bases e alicerces primeiro, onde estão as nossas capacidades comunicativas, depois aparecem as partes superiores. Esse estudo entende-se também como o início das artes liberais, entendidas como um conhecimento básico, que se busca até mesmo hoje, mesmo que de modo confuso, no ensino escolar de qualquer país. Dentre as capacidades primordiais, está uma enormemente ignorada atualmente, a memória.
Já nas primeiras lições de latim, vamos precisar “aquecer” nossa memória. Já ouviram falar da dificuldade que ingleses e americanos possuem para memorizar conjugações verbais? Aquelas que usamos diariamente com bastante desprezo aqui no Brasil? Os oradores latinos usavam, talvez com a mesma tranquilidade, todas as flexões latinas de gênero, caso e conjugações na voz passiva e no conjuntivo, para citar alguns exemplos. Aí está o primeiro treino de memória que faz um aluno de latim e grego, para gravar essas variações que um verbo ou substantivo deve ter. Não deixemos escapar, neste percurso, a memória auditiva. Na verdade, devemos dar a mesma importância à memorização de sons e figuras ou letras impressas, uma vez que podemos entender tudo isso como imagens, mas pensemos que ligado à pronúncia está a memória muscular e a capacidade de, pelo menos, articular bem a fala. Além de flexões, estão estruturas e frases inteiras. Aos poucos, os alunos memorizam versos para depois serem capazes de poesias inteiras. Desse modo, armazenam estruturas completas que servem ao aprendizado de lições gramaticais indispensáveis nesse estudo. Portanto, é uma habilidade tão necessária em todo o caminho, que é impossível fazer a primeira lição de latim sem melhorá-la de algum modo. Talvez, por isso mesmo, muitos alunos iniciantes que fazem suas primeiras questões, relatem um cansaço diferente, que por vezes nunca haviam sentido. A capacidade de memorização se amplia e, junto dela, vem a necessidade da análise e a operação da abstração.
As duas coisas são exigidas e crescem simultaneamente. Um bom método de estudos não nos dá análises prontas, precisamos nos deparar com algo inteiriço, com um todo, seja uma unidade frasal ou textual. Sabemos que textos comunicam realidades e ao tentar alcançá-las, precisando compreender um discurso inteiro para isso, começaremos a enfrentar dúvidas e conotações mais difíceis de alcançar. No caso do grego e do latim, o modo de expressão dessas línguas nos leva a esses momentos o tempo todo! Porque estamos lidando com novas estruturas, um novo modo de pensar ao comunicar-se. Essas línguas carregam consigo uma cosmovisão muito ligada à cultura clássica e ao mundo das imagens compartilhadas pelos antigos gregos e latinos. Nesse ponto, elas se diferem muito das línguas modernas. Quando nos deparamos com esse tipo de obstáculo durante os estudos, o que recairá em uma incompreensão de estruturas gramaticais, precisaremos imediatamente de um esforço de abstração e análise.
Muitos pensam que os livros devem dizer absolutamente tudo que está acontecendo em um texto, que deve conter informações detalhadas das origens, partes, funções e variações de um vocábulo. Poucos, porém, conseguem notar que somos capazes de observar qualquer coisa da realidade, seja uma palavra, de modo inesgotável! Poderia escrever um livro sobre o verbo “pugnare”. Falar de todos os momentos em que aparece na literatura, suas raízes e derivações. Ou seja, o objetivo de um método de latim não é informar absolutamente tudo, mas indicar o essencial, que possibilite aos alunos o aprendizado da língua. Para esse fim, muitos métodos podem funcionar, alguns sem intermédio de professores talvez, mas nenhum trará todas as informações! Isso quer dizer que os alunos precisam desde o início colocar suas capacidades de observação, imaginação, abstração a serviço de muitas análises. Essa habilidade, deve se desenvolver em todos os casos, é natural que nossa inteligência a alcance com o tempo e a aprimore. Os estudos das línguas antigas sempre fizeram esse papel de dar o primeiro movimento em direção a análise gramatical. Somente em nosso tempo, é que fazemos isso com a nossa própria língua. Antigamente a alfabetização dos europeus e a análise iniciava pelo latim. Depois de fazer isso com uma língua, para compreender textos, livrar-se de dúvidas, obter clareza na leitura, é que seremos capazes de partir para voos mais altos. Nesse caso a capacidade de análise estará a serviço de muitas atividades: de leitura, na resolução de exercício, aprendizado da gramática, de figuras de linguagem, aprendizado do ritmo e tantas outras ligadas a essas. Nos estudos superiores, não seremos necessariamente cobrados apenas de análises morfossintáticas de orações e palavras, mas de um todo ainda mais complexo. Precisaremos analisar discursos inteiros e perceber até mesmo suas bases lógicas, ontológicas e epistemológicas. Será difícil fazer isso em qualquer área do conhecimento se não somos letrados, no sentido de possuir as capacidades que nos dão as letras, como disciplina. Sem isso, até mesmo a nossa criatividade é limitada.
Teorias modernas enfatizam, no processo de criação de algo novo, três principais etapas: análise, geração e síntese. Quebramos, dissolvemos, um corpo, um assunto, ou objeto da realidade primeiro e dele buscamos causas, princípios, efeitos, depois os inserimos em diferente contextos e situações diferentes para, por fim, sintetizá-los em algo novo. Um processo desse tipo se dá em inúmeras situações, as crianças fazem isso quando estão se divertindo. Inventam inúmeras coisas novas a partir de seus brinquedos, narrativas de super-heróis e tantos outros elementos presentes no seu mundo infantil. Os adultos também fazem isso, mas precisam fazer isso em outro nível de informações e elementos. A verdade complexa que se apresenta para um pesquisador ou leitor de livros historiográficos, por exemplo, é imensamente maior. Como a natureza, até mesmo de nossa inteligência, dificilmente dá saltos, senão por milagre, precisaremos passar por diferentes graus de habilidades até chegar em criações elevadas. As primeiras atividades que fazemos nesse sentido estão na fantasia, imaginação e composição de textos. As crianças criam narrativas falsas, puramente imaginativas, com muita facilidade, mas perdem essa capacidade com o tempo. Precisamos, então, resgatá-la. Um bom método de latim e grego nos ajuda a fazer isso no grau de exigência pertinente à elevação dessa capacidade. Avançamos certo grau em nossa capacidade criativa se criamos textos nessas línguas, se narramos algo num sistema e cosmovisão diferentes dos nossos. É na volta dessa capacidade que estão os exercícios de aprendizagem mais difíceis. Criar e resumir textos gregos e latinos, responder perguntas nessas línguas antigas com correção gramatical. Notemos a riqueza desse processo, é impossível passar ileso por isso.
Por fim, logicamente, seremos capazes de pesquisas muito profundas em qualquer assunto filosófico e científico, uma vez que o nosso conhecimento e línguas ocidentais estão apoiados nas línguas e literaturas greco-latinas. Além de sairmos de um estudo como esse muito treinados para as necessidades do intelecto, também poderemos ler o que os pais das ciências do ocidente escreveram e como eles constituíram os estudos que fazemos até hoje. Podemos, sim, dizer que muito de tudo isso mudou, mas alterou-se de modo acumulativo e por meio de inúmeras ramificações do conhecimento. Em qualquer área de estudo é difícil de fugir de Platão e Aristóteles, pois estão nas bases epistemológicas e ontológicas. É difícil falar em qualquer literatura, sem Homero e Virgílio. É complicadíssimo compreender a história atual sem o conhecimento da cosmovisão e da linguagem da antiguidade clássica. Estamos em um mundo que, bem ou mal, floresceu disso tudo.
Portanto, se fizeres um estudo como esse, terás em mãos uma chave para as práticas intelectuais mais avançadas. Se não quiseres fazer isso agora, mais tarde, provavelmente sentirás necessidade. Diferentemente da crença comum, a palavra “original” com seu significado real, deriva de “origo”, origem, e ela indica que o original não é o totalmente novo e disruptivo, mas o novo que apoia-se no melhor feito pela humanidade. Ou seja, não é possível ser original sem conhecer bem e até mesmo explorar o passado, pois quem não o faz, normalmente – como diz a velha opinião – volta a repetir algo que já aconteceu e não deu certo. Logo, essas capacidades todas são boas para aqueles que desejam a sabedoria e a originalidade. Se for o teu caso, então já sabes onde procurar adquirir as capacidades mais agudas para isso.